Crônica
"Relações e respeito - Um simples registro de cenas de pai e filha na pandemia, 2020"
Agradecemos a jornalista, contadora de história e empreendedora do cuidado social Raquel Budow, que nos presenteia com essa sensível crônica.
Relações e respeito - Um simples registro de cenas de pai e filha na pandemia, 2020.
Como é difícil respeitar...
Você fala:
- Pai, não pega na pata do gato que ele morde, tá?
Aí viro pro gato, pego ele no colo e digo:
- Big, dá um bom dia pro vovô!
Daí, vou com o felino na direção do meu pai. E o que que ele faz???? Vai direto na pata do gato. E o que que o gato faz???? Morde.
Tudo o que eu queria evitar, acontece. Mais uma vez. Será que minha estratégia está furada?
Eu, claro, insisto. Afinal até na pandemia sou a mesma.
No dia seguinte, a mesma cena se sucede com o desfecho conhecido. E em outra manhã e dois dias depois... Quero que os dois se aproximem. Mas, por enquanto, estou colecionando tentativas frustradas. Parece que só eu quero que eles interajam mais.
Chegou uma manhã em que acordei, lembrei da situação e não levei o gato pra perto do meu pai. No dia seguinte, também repeti meu novo comportamento. E mais algumas vezes. Me entristeci.
E aí um dia (igual a tantos nessa época de Covid) amanheceu tão lindamente, com um céu limpo, sem nuvens e tão azul que todo mundo devia dar bom dia para todo mundo.
Adivinha! Sim, é isso mesmo! Meu pai pegou na pata do Big, que lhe lascou uma mordida. Mas me deu uma felicidade interior.
O gato está na dele. E o meu pai não absorve – por orifício algum – o que já falei dezenas de vezes (coitado!). Eu também não! Vivo insistindo. Como é difícil respeitar as limitações da idade de meu pai e as manias recentes que adquiriu e, por que não, se intensificaram na pandemia.
Eu e o meu comportamento ficamos para uma próxima crônica. Agora, o tema é a dificuldade de olhar nossos idosos e saber lidar com eles com respeito.
Assumo. Estou em treinamento. Eu ainda não consigo o tempo todo. No caso específico do gato e da pegada ou tentativa de pegar na pata, dou uma bronca no Big - que, nesses momentos, geralmente fica tentando me morder também - e o coloco no chão. Ele dá uma corridinha pra algum lugar do apê. Agora, meu pai, automaticamente, digo umas palavras que não são as melhores. Tipo assim: “Caramba, você continua tentando pegar na patinha dele. O Big não gosta, será que ainda não sabe disso? Faz de propósito. Que ignorância! Puxa, quantas vezes tenho que repetir?”
O discurso continua mas vou me tocando do que estou fazendo e baixando o tom da voz... dali a pouco só pergunto se ele se machucou, com meu coração bem apertadinho. E ele, na maior inocência, me responde que está “só brincando com o gato” e deixa claro que não ouviu nenhuma das minhas 150 recomendações de não segurar na pata do gato!
Claro que o relacionamento entre eu e meu pai vai muito mais além do que como brincar ou não com o Big. Mas, o caso do gato é um exemplo pequeno da complexidade que se tornou a convivência diária com um idoso. E também como é importante se adaptar a essa nova realidade. Na pandemia, no pós-pandemia. Com muito respeito.
Juro que vou me lembrar disso amanhã, quando pegar o gato no colo pra ele dar bom dia pro vovô!